Contos

Sem Perdão

Sinara Foss


Recém-formada em Farmácia Bioquímica, Márcia não estranha o odor característico de hospitais, ao contrário,a acalma. A faculdade e o trabalho sempre foram seu refúgio. O pai não estava lá.

Sente na barriga uma cólica que começou forte pela manhã, recrudescendo até rasgar-lhe as entranhas. A enfermeira a olha com carinho e aperta sua mão.

- Vai dar tudo certo, mãezinha! É o primeiro, né? -Mal mexe a boca para sorrir, aperta os lábios e sacode a cabeça concordando.
A médica que a acompanhou no período pré-natal, após examiná-la comunica satisfeita:
- 6 dedos de dilatação! Ótimo. O bebe está em posição cefálica, vai ser um parto rápido. – Sorri com os olhos de um profissional quando vê tudo encaminhar-se bem.

O bebê conhece o mundo pesando 2 quilos, 970 gramas e 49 centímetros de comprimento. Márcia apressa-se para ver o rostinho avermelhado daquele ser cujos pulmões indicavam saúde! Parecida com Edson, seu ex namorado, que nem sabia de sua existência. Engoliu o choro e sentiu um aperto no estômago ao lembrar da relação amorosa que durou pouco.

Edson nunca entendera as atitudes possessivas de Gervásio, seu pai. O semblante austero, a barba cerrada e preta,os olhos muito escuros fagulhavam raiva sempre que se dirigiam a ele. O nariz adunco despencava um zelo excessivo no bigode com poucos fios brancos. Após algumas brigas e discussões, sumiu. Inclusive da cidade,sem nunca ao menos se despedir ou deixar contato.

De volta a casa dos pais, a paz de Márcia é afugentada pelo medo. Não há vez que durma sem que sonhe que o pai entra no quarto, sem fazer barulho,e retira a filha do berço. Gervásio a encara e, aos poucos, seus olhos escuros mudam de cor, avermelham e depois incendeiam . As duas tochas cheias de desejo voltam-se para ela. O pai leva o dedo à boca para pedir silêncio emitindo um som. Shhhh Petrificada dentro desse tormento, com o chiado machucando seu ouvido,não consegue acordar, nem se mover.

Num salto, sem saber onde está, levanta com o corpo molhado de suor. O coração pula aliviado ao dar-se conta que é um pesadelo. O desespero a domina quando lembra que em poucos meses terá que voltar ao laboratório e a frágil Melinda ficará aos cuidados dos pais. A mãe vai saber cuidar de sua filha? Cuidará como não cuidou dela? Pensa enquanto olha a menina no berço.

Bem recuperada do parto, começa a fazer as primeiras atividades da casa para ajudar a mãe. Entra no escritório do pai com uma xícara de chá quente, cujo vapor a esconde. A fumaça dança ao som da sentença que ela mesma determinou. Vê escondido atrás da barba um sorriso surpreso. Gervásio estende a mão forte e pega a taça bem equilibrada sobre o pires. Márcia observa em paz o progenitor beber tudo em silêncio.

As três batidinhas na porta do escritório tornam-se um hábito. O pai já espera pelo chá que para ele é um brinde ao perdão e esquecimento dos erros do passado.

Melinda passa boa parte do dia sentada sobre o mesmo acolchoado rosa que Márcia um dia usou, na sala perto da cozinha. Alegre e barulhenta,o bebê brinca com chocalhos espalhados e objetos coloridos e balbucia muitas palavras. Márcia senta no chão, pega um brinquedo e o aperta. Seus olhos se perdem na lembrança que a corrói:em uma semana volta ao trabalho.

A noite mal dormida termina quando escuta gritos. Corre até o quarto dos pais e vê a mãe com cabelos soltos, desgrenhados na porta do banheiro com semblante transtornado. Aponta para o marido encolhido, deitado no piso do banheiro. Gervásio com a cabeça perto do vaso, os olhos muito abertos como se contemplassem o diabo, tem a mão azulada aberta no peito. A barba, a blusa do pijama e o azulejo do chão molhados de vômito.

-Chama uma ambulância, rápido! - Gritou a mãe entre lágrimas -Chama!

Marta encosta a mão na testa do pai, depois pressiona o polegar sobre seu pulso já enrijecido. Espera alguns segundos depois olha para a mãe sem expressão no olhar.

- Não, mãe. Nãoa dianta mais. -Marta com a mão no pescoço do pai não sentia mais o pulsar.
- Chama, chama! O seu pai é forte, nem gripe ele tem... Não pode morrer assim de uma hora pra outra! Os médicos vão acordá-lo, eu sei.

- Mãe. Tenta se acalmar. -Marta pega a mãe pelos ombros e a faz encara-la - O pai morreu do coração, teve um AVC...Algo assim. Ele está morto!

- Impossível... -Regina olha para a filha com raiva e grita com o rosto vermelho encharcado com lágrimas e ranho enquanto pressiona a cabeça com as mãos. -Não! Não! Você nem gostava dele!

Marta olha para a mãe e se pergunta se ela nunca percebera nada? Como pôde ser tão desligada? O comportamento estranho do pai com ela, o ciúme... Suspira e se afasta.Vai para o quarto com a filha, as duas deitadas sobre o acolchoado forrado com brinquedos. Não chora, não sente a perda. Não sente nada.

Ouve o barulho de gente que entra e que sai. Regina chama seu nome e ela desce com a menina. Doutor Ariosto, um dos médicos mais antigos do Hospital Municipal Vinha d’Alho, vizinho da mesma rua quer falar com as duas juntas.

-O Gervásio estava doente, tinha algum problema? Não me lembro de vê-lo queixar-se de nada. Tomava algum remédio? Creio que precisaremos fazer a autópsia para descobrir a causa mortis e...

-Não será preciso, doutor. -Regina sempre tão submissa abaixa a voz, engasga com o choro. Respira fundo, levanta o rosto e encara a filha que abre bem os olhos esperando pela sua fala.

-O Gervásio não estava bem há meses. Pressão alta,queixava-se de dores no peito. Nunca abandonava seu copo de uísque toda a noite para relaxar...Não quero que o cortem...que o machuquem para descobrir algo que já sabemos. Chega de sofrimento nesta casa. Acabou. Não quero mais ver ninguém que eu amo sendo ferido.

 

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